quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Florbela Espanca


Sonho - Florbela Espanca

Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir…
Que se sonhasse a chorar…
Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que a sonhar beijasse doce
A nossa boca… um lamento…
Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho;
E depois ver vir a morte
Despedaçar esses laços!…
…É pior que ter um filho
Que nos morresse nos braços!

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Fernando Pessoa - O livro do desassossego

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de
parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me
pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles
nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta
de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.
Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido,
sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca
coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de
milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao
destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos
meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo
maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma
semelhança de clamor. Mas a reacção contra mim desce-me da inteligência... Vejome
no quarto andar alto da Rua dos Douradores, assisto-me com sono; olho, sobre
o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que a expender
estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida!,
a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui,
eu, assim!...