segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Lobo Antunes

Receita para me lerem – António Lobo Antunes

Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É que os meus livros não são para serem lidos no sentido em que usualmente se chama ler: a única forma
parece-me
de abordar os romances que escrevo é apanha-los do mesmo modo que se apanha uma doença. Dizia-se de Bjorn Borg, comparando-o com outros tenistas, que estes jogavam tênis enquanto Borg jogava outra coisa. Aquilo a que por comodidade chamei romances, como poderia ter chamado poemas, visões, o que se quiser, apenas se entenderão se os tomarem por outra coisa. A pessoa tem de renunciar à sua própria chave
aquela que todos temos para abria a vida, a nossa e a alheia
e utilizar a chave que o texto lhe oferece. De outra maneira torna-se incompreensível, dado que as palavras são apenas signos de sentimentos íntimos, e as personagens, situações e intriga os pretextos de superfície que utilizo para conduzir ao fundo avesso da alma. A verdadeira aventura que proponho é aquela que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana. Quem não entender isso aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares e menos importantes dos livros: o país, a relação homem-mulher, o problema da identidade e da procura dela, África e a brutalidade da exploração colonial, etc, temas se calhar muito importantes do ponto de vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada têm a ver com o meu trabalho. O mais que, em geral, recebemos da vida é um conhecimento dela que chega demasiado tarde. Por isso não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas: são, somente, símbolos materiais de ilusões fantásticas, a racionalidade truncada que é a nossa. É preciso que se abandone ao seu aparente desleixo, às suspensões, às longas elipses, ao assombrado vai-e-vem de ondas que, a pouco e pouco, os levarão ao encontro da treva fatal, indispensável ao renascimento e à renovação do espírito. É necessário que a confiança nos valores comuns se dissolva página a página, que a nossa enganosa coesão interior vá perdendo gradualmente o sentido que não possui e, todavia lhe dávamos, para que outra ordem nasça desse choque, pode ser que amargo mas inevitável. Gostaria que meus romances não estivessem nas livrarias ao lado dos outros, mas afastados e numa caixa hermética, para não contagiarem narrativas alheias ou os leitores desprevenidos: é que sai caro buscar uma mentira e encontrar uma verdade. Caminhem pelas minhas páginas como num sonho porque é nesse sonho, nas suas claridades e nas suas sombras, que se irão achando os significados do romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos instintos de claridade e às sombras da vossa pré-história. E, uma vez acabada a viagem
e fechado o livro
convalesça. Exijo que o leitor tenha uma voz entre as
vozes do romance
ou poema, ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar a fim de poder ter no assento no meio dos demônios e dos anjos da terra. Outra abordagem do que escrevo é
limita-se a ser
uma leitura, não uma iniciação ao ermo onde o visitante terá a sua carne consumida na solidão e na alegria. Isto não se torna complicado se tomarem a obra como tal doença que acima referi: verão que regressam de vocês mesmos carregados de despojos. Alguns
quase todos
os mal-entendidos em relação ao que eu faço, derivam do facto de abordarem o que escrevo como nos ensinaram a abordar qualquer narrativa. E a surpresa vem de não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos aparentemente para melhor respiramos. Abandonem as vossas roupas de criaturas civilizadas, cheias de restrições e permitam-se escutar a voz do corpo. Reparem como as figuras que povoam o que eu digo não são descritas e quase não possuem relevo: é que se trata de vocês mesmos. Disse em tempos que o livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual dos dois somos. Tento que cada um seja ambos e regressemos desses espelhos como quem regressa da caverna do que era. É a única salvação que conheço e, ainda que conhecesse outras, a única que me interessa. Era altura de ser claro acerca do que penso sobre a arte de escrever um romance, eu que em geral respondo às perguntas dos jornalistas com ligeireza divertida, por se me afigurarem supérfluas: assim que conhecemos as respostas, todas as questões se tornam inimportantes. E, por favor, abandonem a faculdade de julgar: logo que se compreende, o julgamento termina, e quedamo-nos, assombrados, diante da luminosa facilidade de tudo. Porque os meus romances são muito mais simples do que parecem: a experiência da antropofagia através da fome continuada, e a luta contra as aventuras sem cálculo mas com sentido prático que os romances em geral são. O problema é faltar-lhes o essencial: a intensa dignidade de uma criatura interira. Faulkner, de quem já não gosto o que gostava, dizia ter descoberto que escrever é uma muito bela coisa: faz os homens caminharem sobre as patas traseiras e projectarem uma enorme sombra. Peço-lhes que dêem por ela, compreendam que vos pertence e, além de compreenderem que vos pertence, é o que pode, no melhor dos casos, dar nexo à vossa vida.

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