domingo, 26 de agosto de 2007

A Lapa.

A Lapa é um dos lugares que eu mais gosto no Rio de Janeiro. Talvez pelo cheiro da boemia que paira ali... E também tem muita coisa bonita pra se ver ao redor... Segue um texto fantástico com um pouquinho da história da Lapa que é na verdade uma introdução pra uma antologia de vários autores sobre a Lapa.




Beatriz Kushnir
Lapa do desterro e do desvario – uma antologia
Organizado por Isabel Lustosa
Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001



Essa coletânea de textos tem como foco a Lapa, como um espaço de sociabilidade boêmia habitado por personagens revestidos de exotismo e decadência. Para muitos que observaram esse palco da diversão e têm para si a cidade do Rio de Janeiro como a materialização tropical da Belle Époque, a imagem da "Montmartre carioca" parece a sua melhor definição. O volume, organizado por Isabel Lustosa, é uma edição bem cuidada que traz 26 escritores, poetas, músicos e cronistas percorrendo esse espaço como habitantes e/ou visitantes, no longo tempo de fins do século XIX aos anos 1970. Além do registro desses escritos, há também a preocupação de reunir quase 30 desenhos e fotos desse território que fascina pela idéia de perdição/beleza/liberdade/caos. Seus autores – cariocas legítimos, ou adeptos da visão de que a cidade é "a outra terra natal de todos nós que não tivemos a graça de nascer aqui", segundo Luís Severo da Costa em um Sabadoyle –, produziram crônicas, letras de músicas e trechos de autobiografias, que aqui foram divididos em duas partes, não nomeadas, mas coloridas, entre o azul e o púrpura. No universo da noite, Isabel Lustosa englobou de Aluísio de Azevedo a Mario Lago, passando por João do Rio e Lima Barreto, Wilson Batista e Noel Rosa, Drummond e Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e Herivelto Martins, entre outros. Já o vermelho sangue tem os depoimentos e/ou a bela escrita de naipes como, entre outros, Madame Satã, Rubem Fonseca e Aguinaldo Silva. Desses múltiplos olhares que recaíram sobre a Lapa, há análises internas, depoimentos de seus moradores, como Satã, Manuel Bandeira e Aguinaldo Silva. Ou também muitas visões que preconceituosamente definiram o bairro, esse emaranhado de becos e ruelas, como um território livre para os pecados da carne, um lugar de perdição onde o clima cheirava a lupanar. Fronteiriça à Glória, a Lapa começa na rua Conde Lage – espaço consagrado ao miché, como também o eram as ruas Taylor e Joaquim Silva –, percorre e atravessa os Arcos e, pela Mem de Sá, chega até a praça Tiradentes – onde a homossexualidade masculina sempre fez calçada. É nesse território, quase um corredor que liga o mar ao centro velho da cidade, que mitos e fantasias construídas sedimentaram no imaginário personagens emblemáticos. Nessa porção da cidade, de códigos definidos e cultuados, boêmia, prostituição, intelectualidade e, principalmente, criatividade em ebulição reinavam. Para além dessa visão colorida, pari passo e na mesma proporção existiam pobreza,doenças, decadência, habitações coletivas – cortiços e as biras [biroscas, quarto-gaveta] que Aguinaldo Silva redesenha com maestria, já que as freqüentou como morador. A Lapa é, portanto, um espaço onde opostos conviviam, porque complementavam-se, como também o reverso, que ali não só tinha vez como era instigado a acontecer. Madame Satã, um como muitos outros estrangeiros do local, certamente, é seu exemplo mais cultuado, rememorado e difundido. Esse negro pernambucano, alto, forte e valente, que trazia uma gilete na sola de seu sapato e nos golpes de capoeira cortava o inimigo, era também um homossexual assumido que se travestia em seus espetáculos, além de oferecer proteção a prostitutas. Entre bandido e justiceiro, após anos de prisão na Ilha Grande, morre no desterro. Sua imagem é sempre a personificação do que seriam os ideários desses filhos da revolução, no sentido do mote transformador, que a atmosfera da Lapa boêmia cultuaria.Nas inúmeras tentativas de se mapear esse território, e perseguindo a idéia de antologias acerca da Lapa, uma seleção de textos sobre o mesmo tema, um pouco mais ampla que essa, foi editada no final da década de 1970 por Gasparino Damatta.

A semelhança entre as duas é que a de Isabel Lustosa manteve duas escolhas de Damatta: Uma noite de chuva ou Simão, diletante de ambientes, de Ribeiro Couto, publicado em 1927, e A última Lapa, de Antônio Maria, de 1959. A crônica de Antônio Maria, esse jornalista pernambucano que se tornou uma figura emblemática na
noite carioca dos anos 1950, poderia ser percebida como um thriller do próprio livro. Ao ser acordado por telefone com alguém lhe pedindo um texto sobre o bairro para uma coletânea, o jornalista refaz sua passagem/morada pelo edifício Sousa, na rua do Passeio, entre 1940 e 1941, antes de se deslocar, como muitos, para Copacabana. Do seu depoimento, como de quase todas as narrativas desse livro, lugares, personagens e a diversidade étnica da cidade e daquele espaço são pontuados, além, é claro, de iluminar as várias vidas possíveis de lá se ter e ser pela manhã, à noite ou na madrugada. Por vezes tem-se a impressão de que o Rio de Janeiro do período tinha uma gama de gentes, no plural, que a tornavam um local bem mais rico em possibilidades e, talvez, mais interessante de habitar. Dos espaços e mitos a se percorrer, a Lapa abriga tanto o locus do sagrado, a Igreja Nossa Senhora da Lapa do Desterro, como as expressões do profano, Madame Satã e seu bloco de Gasparino Damatta, Antologia da Lapa. Vida boêmia no Rio de Janeiro (Rio de janeiro, Codecri, 1978). carnaval dos anos 1930, "Caçadores de Veados" – no qual os homossexuais podiam se travestir de mulher à luz do dia –, a leiteria Bol e o restaurante Capela, as casas de strip-tease, e as salas de boxe. Como ilhas na cidade, nesse bairro aflorava o que era rotulado como perversão. Lá, esse crime e/ou pecado era permitido, vigiado, consentido e punido. Tem sido voz corrente na produção das ciências sociais apropriar-se de termos do discurso médico-policial característico do fim do século XIX e das primeiras décadas do século XX, e aprisionar tais expressões do "proibido", permitidas em alguns espaços da cidade, na concepção de bas fond. Nessa idéia de que existe um subterrâneo da sociedade há uma falsa imagem de que tudo de inóspito mora dois degraus abaixo da superfície. Além de inverídico, estabelece, no território, rupturas/guetos, esquecendo que é no vaivém de seus habitantes pelos espaços da cidade que trocas são permitidas. Nesse sentido, a meu juízo, a concepção e o uso de bas fond deve ser redimensionada e, principalmente, seu emprego repensado. Assim sendo, nesse entra-e-sai de habitués, o baixo meretrício da Lapa – como o Mangue –era tido como o abismo e a decadência, a diversão amarga, o terreno que acolhia e difundia doenças, como a sífilis, entre as prostitutas e seus fregueses. Mas essas doenças não estavam aprisionadas nesse gueto, já que o contato externo as levava para fora dos muros imaginários desse "território do pecado". Além do que, também se percebe uma clara organização espacial dentro desse "território do prazer" para que as funções fossem exercidas. Isso se expressa na divisão do mercado da prostituição. A zona francesa era na rua Silva Jardim e no beco das Carmelitas; as polacas judias, tidas como escravas brancas, ficavam na rua Joaquim Silva, e as brasileiras, as "nacionais", na Morais e Vale. Da janela do seu quarto da Morais e Vale, onde Manuel Bandeira morou em março de 1938, ao deixar o Curvelo e Santa Teresa, o poeta, em Itinerário de Passárgada, descreveu seu"sentimento de solidariedade com a miséria". Lá ele pôde contemplar a paisagem, não como fazia no Morro do Curvelo, sombranceiramente, mas como que de dentro dela. (...) Quando chegava à janela, o que me retinha os olhos, e a meditação (...) era o becozinho sujo em baixo, onde passava tanta gente pobre – lavadeiras, garçons de cafés.Inserido-se nesse panorama de definições e descobertas, o cronista Luís Martins definiu que "a vida, naquele tempo, tinha para mim o sabor das revelações". Assim, as imagens desse lugar continuaram por perseguir Bandeira, e, em Romance do beco, esse também um forasteiro na cidade, se surpreende com a quantidade de gente que por lá passava, pelo caminho aberto nos terrenos dos frades carmelitas da Lapa, [que] começa na praia da Glória e vem morrer na rua Morais e Vale. (...) Toda a mocidade do Rio, estudantes, caixeiros, empregados públicos, artistas, Raul de Leoni... É inacreditável como cabia tanto homem no beco. O beco era a Matriz da cidade. Um dia não pôde mais, rebentou em Mangues.Para além do sexo pago, do prazer rápido e fugidio, a Lapa abrigava uma outra gama de sensações, como o comércio da cocaína. Pelas descrições dos cronistas, visualiza-se o quanto o tema das "drogas ilícitas" teve seu discurso alterado no correr do século XX – de fins medicamentosos e vendidas em farmácias, ao tráfico e à criminalidade. Na descrição de Benjamim Costallat, a Lapa era, nos anos 1920, um local de consumo e distribuição da droga vendida na clandestinidade de um carro parado à espera de fregueses. Como também:(...) o comércio da cocaína é um comércio que opera mais tranqüilamente à noite. De dia, há as farmácias. E não são poucas as que vendem. É só uma questão de preço e de confiança em quem compra...Aliás, toda a cocaína que existe no mercado consumidor saiu da mão de respeitáveis farmacêuticos que a importaram para usos terapêuticos.A circulação dessa droga e o espírito vivido na Lapa, tornaram-na, segundo Costallat, o "bairro da cocaína". Semelhante aos pontos de venda em carros parados, havia também oslegendários Irmãos Meira, que transportavam o pó em anéis lockers, ou os vidrinhos Merkencontrados dentro das farmácias. Costallat, seguindo uma tradição de crônicas de jornal que produziram descrições das suas cidades, como as de Paul Fável em Os mistérios de Londres, elaborou o seu Os mistérios do Rio a partir das narrativas publicadas no Jornal do Brasil. Tornou-se, assim, um exemplo típico, como também o foram João do Rio e Lima Barreto, de flâneur da Belle Époque. É importante sublinhar que, além de criticar essa perversão que a cocaína trazia aos habitantes, Costallat enfatizava uma solidariedade e irmandade tanto no vício quanto na vida, que caracterizavam aquela parte da cidade. Essa referência poderia ser destacada como um fio condutor que aproxima a maioria das narrativas contempladas nesse volume.A noção de auxílio marca magistralmente, contudo, o último depoimento da coletânea, ao meu juízo o mais detalhado, revelador e pungente de todos os escolhidos. Nele, o novelista Aguinaldo Silva se abre por inteiro, e sem meias palavras revela uma Lapa dos anos 1970 em plena decadência. Nesse contexto, desnuda a si e a outros personagens e histórias, descrevendo inclusive sua ''iniciação'' em pequenos crimes, como também suas paixões do período. Aguinaldo Silva vivencia um momento-chave do bairro, da cidade, do país naquele instante, pelas lentes e códigos daquele espaço, deixa a Lapa um pouco antes da grande reforma urbana sofrida com o projeto Corredor Cultural, e também não assiste à derrubada dos cortiços e do chamado Ferro de Engomar– um quarteirão em bico, exatamente no formato do utensílio doméstico. Dentro do ideário ilusionista do milagre econômico que a ditadura civil-militar nos enfiava goela abaixo, transformações, não só espaciais, eram arbitrariamente impostas. Como Satã, Aguinaldo também experimentou um desterro político e não mais voltou ao bairro como morador. A Lapa, contudo, como uma fênix, passa por uma redescoberta, no final do século XX, que a coletânea, infelizmente, não contempla. Portanto, se toda a idéia de uma vida boêmia ali existente era associada às práticas de uma suposta decadência moral, as tentativas de provocar a derrocada física daquele ambiente, como um pólo de criatividade, sobrevoou algumas vezes esse "território do livre". Pela força da caneta, esse espaço do "pecado permitido" foi condenado a desaparecer, pela primeira vez, por uma onda moralista do pós-Segunda Guerra. Apontando essa primeira tentativa de assassinato, de morte da simbologia da Lapa, a narrativa de Antônio Maria, colocada no espaço azul do livro, já quase anunciando os dilemas mais contemporâneos reunidos na segunda parte – ao meu juízo a mais instigante –, resumem esse tempo ao sentenciar queForam os dois últimos anos da Lapa que marcaram época. Vieram logo depois o fechamento dos prostíbulos e a decretação da ilegalidade do jogo. Os malandros iriam ficar por ali, esperando o quê? Dispersaram-se, empobreceram, arribaram nos subúrbios, emcasas de parentes humildes que os esperavam, cheios de fé, com uma cama por forrar e um prato a mais a pôr na mesa.Nesse sentido, as escolhas de Isabel Lustosa recaem sobre textos que procuraram apreender o bairro em seus vários momentos de decadência e opulência, trazendo-o à tona pelo signo do abajur lilás, da ''dolorosa visão da borrada maquiagem de véspera no rosto precocementeenvelhecido das mulheres'', como ela diz na introdução. A organizadora, talvez sem se dar conta, insinua a lembrança de um outro personagem que, mesmo não sendo do local, carregava o estigma da marginalidade – Plínio Marcos. Para Lustosa, ''o que surge na literatura sobre o bairro não é a malandragem, mas as mulheres de vida fácil, um certo desencanto e um ceticismo crítico''. Essa bruma de alegria-triste define tanto o encanto pela história da Lapa quanto o seu mistério. Abrigando um espaço criativo e transformador, envolto no signo da decadência, a Lapa está sempre em pauta. Suas transformações arquitetônicas ao longo das décadas espelham as rugas que marcam o rosto dessa Cidade-Metrópole, Cidade-Capital que não perde, felizmente, essa aura da inventividade criadora. Dentro desse espírito de renascimento e transformação, de fim de linha e recomeço eterno, de berço e morte, em 10/4/2002, o jornalista Elio Gaspari, em sua coluna para o jornal O Globo, narrou uma visita que fez ao recém-remodelado bairro da Lapa, que vem recebendo da Prefeitura da cidade obras de saneamento e infra-estrutura. Entusiasmado com o encontro do passado que está impresso no casario e nos paralelepípedos das ruas do Lavradio, Inválidos, Moraes e Vale e da avenida Gomes Freire, definiu que "deu-se na Lapa o reencontro das duas cidades que convivem no Rio, a dos pobres e a daqueles que acham que não são pobres. Sempre que essas duas populações se encontram, o Rio floresce. Sempre que elas se separam, a cidade se degrada". Contaminados por essa aposta na integração de territórios e abandonando um discurso médico-policial tão marcadamente moralista, autoritário e segregador, que dividiu a cidade e seus habitantes por uma moral da boa conduta, é que se percebe que a saída está em não fracionar. Para tal, há que se aproximar os espaços e desconstruir a visão de uma cidade sã versus o lupanar, investindo, portanto, no contato e na mistura. Como também, acreditando que não são os mortos que dominam os vivos e, sim, que há uma tradição e uma cultura vinculadas aos processos de criatividade e não de fossilização. Refletindo acerca das manifestações culturais como uma "fala" do que está pulsando, sabe-se que, infelizmente, muitas vezes as expressões da cultura popular receberam das elitesgovernamentais, durante o século XX, tentativas de desestruturação pela repressão policial. Nesse sentido, os diversos movimentos da Lapa para se auto-reconstruir comprovam a falência de um discurso que estabelece, ilusoriamente, "bolsões de saber" nos espaços da cidade, e os opõem aos "lugares do prazer". Busca-se, assim, separar conhecimento e satisfação, corpo e mente, como se fossem universos estanques e incomunicáveis. Esse quadro de políticas públicas e culturais cria uma errônea idéia de: ou parternalizar a cultura popular – engessando-a a uma imagem idealizada – ou conceder-lhe um status de inferior.
Nessa perspectiva de congelar uma manifestação cultural num suposto momento de nascimento, reencenando-o inúmeras vezes depois, não irá preservá-la. Muito pelo contrário, essa falsa noção de uma proteção irá matá-la pela asfixia que o engessamento produz.Para ilustrar e concluir, retorno à sugestão de Gaspari: apostar no diálogo e na integração das "partes da cidade" e, portanto, discordar da percepção, quase um devaneio lunático, de que a cidade, como um corpo, pode ser partida em pedaços, em que cada porção corresponderia a um lugar de saciedade. Para visualizar tal idiossincrasia, fico com as saborosas narrativas de Orestes Barbosa, recuperadas por Lustosa. Esse carioca, jornalista e compositor desenha, com maestria, a história de Alice Cavalo de Pau – uma entre as muitas prostitutas imortalizadas na fantasia da "vida fácil".No bordel de Alice, na rua Maranguape, a nata da política nacional vivenciava os prazeres da carne, como se em outros espaços contemplassem apenas o regozijo das mentes. Um cliente de renome lhe pede uma moça, mas faz uma ressalva: "Quero dormir com uma mulher inteligente". Dentro da perspectiva de criar ilusões e "faturar" alguns trocados, algumas prostitutas se faziam passar por francesas e se aproveitavam da febre do culto à cultura européia. A cafetina Alice não consegue compreender seu freguês e faz graça de seu pedido. Desejando sintonizar o homem ao lugar onde está e ao que realmente ali há de melhor, soluciona a A Lapa e os filhos da revolução boêmia.

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